Concordo quando dizem que o teatro e o orgasmo são dois momentos em que nós, seres humanos, mais nos aproximamos de Deus, de Sua semelhança, e daí nos sentirmos ser o Próprio.
O orgasmo, que não é (ou não deveria ser) negado a ninguém (graças a Deus!), é o instante em que a matéria ou corpo ou morfo se confunde com a essência ou espírito ou alma. Não estou me referindo ao gozo, simplesmente, e sim ao “orgasmós” (do grego), no seu mais puro sentido: união completa entre o psíquico e o físico que nos leva e nos eleva ao estado de plena felicidade.
É no teatro, quando se está representando, quando se é ator, que o ser mortal experimenta e percebe, numa fração de tempo, sua proximidade/semelhança do/com Deus (perfeição) imortal.
Vamos a três considerações:
Primeira: o Deus ao qual estou me reportando, necessariamente, não está implícito a perfeição no sentido cristalizado e universal, o sentido positivo. Refiro-me ao Ser (essência) todo-poderoso e criador.
Segunda: não restrinjo somente ao ator o privilégio de sentir-se um Deus. Essa capacidade de transcendência pode ser perfeitamente estendida para a ação-teatro, ou seja, para todos os envolvidos, do diretor ao espectador. Se isso não acontece durante um espetáculo, a mutação não é completa, e passa a sensação de coito interrompido.
Terceira e última: classifico o ator em dois: um é aquele que representa um personagem e o outro é aquele que é (do verbo "esse", em latim, ou "ser") o personagem. Esse, sim, vejo como o verdadeiro ator. Somente ele tem a felicidade de experimentar, completamente, o êxtase de ser sobrenatural. Esse tipo de ator não é fácil de ser encontrado. Já o ator que representa, no máximo, é um retratista, é aquele que imita (nessa categoria a palavra perfeição pode ser discutida). Esse tipo de ator também é difícil de ser achado. Os que não se enquadram em nenhum desses dois paradigmas não devem ser classificados como atores. São aspirantes e precisarão de uma boa escola de teatro para se iniciarem no longo e lento processo de se tornarem futuros deuses.
O teatro tem um caráter mágico de fazer do ator e do espectador um participante na vida de outros seres. Esse transformar-se num outro ser, mesmo que esse outro seja o eu (ego) do ator e/ou do espectador, faz com que ambos se transportem para um plano além do puramente humano. É o plano “orgasmós” no sentido lato. É nele que o humano e o meta-humano interagem. É nele que o ator e o espectador entendem a identidade dos aspectos da criação do personagem com seu mundo concreto e abstrato, o advento do seu universo. Por isso, é nele (ator/espectador) que o Ser, Deus, se manifesta.
A verdade é que estamos sempre perseguindo a mutação homem-Deus, em busca da felicidade plena. Essa busca começou há muito tempo: quando a idade de ouro foi substituída pela idade de ferro.
Conta a história que os gregos e outros povos da antiguidade possuíam a tradição de que em tempos remotos os homens viviam num estado de perfeita inocência e numa felicidade só comparável à dos deuses. Tratavam-se todos como irmãos e alimentavam-se dos frutos da natureza. Desconheciam a guerra. Entre eles e a natureza havia uma completa comunhão. Viviam no plano “Jardim do Éden”. Eles teriam prosseguido nessa existência venturosa se não tivesse dado a corrupção dos costumes, “o pecado da maçã”. Se a idade de ouro não tivesse passado à idade de ferro, a atual, em que todas as aberrações se tornaram normais na humanidade.
Saber dessa mudança de idades é importante para que possamos compreender a essência do teatro, tal como ele se apresenta surgido na Grécia. É que houve uma separação entre a natureza e o comportamento humanos. Trocou-se a espontaneidade pela regra, a alegria pelo sacrifício, a natureza pela sociedade. Enfim, trocou-se o instinto pela razão ordenadora. Houve uma quebra entre os impulsos mais profundos e a necessária vida social. Foi-se obrigado a remar contra a correnteza e só em raras ocasiões o homem pôde voltar a esse íntimo e identificável contato com o mundo natural. São nessas ocasiões que acontece o que se chama de teatro. É a tentativa de voltar à idade de ouro, ou apenas revivê-la.
Quem faz teatro ou faz amor deve perceber que entra nesse túnel e (re)cria a idade da bem-aventurança. Então, não é para menos: o teatro ou o amor nos faz ser o Deus que recria a era da felicidade plena, o Deus que proporciona o plano “orgasmós”. Sejamos atores, sejamos amantes, sejamos deuses, todos!

Manoel Mourivaldo Santiago-Almeida é professor titular da USP, onde pós-graduou-se doutor em Filologia e Língua Portuguesa. Nascido na Bahia, mudou-se para Cuiabá na infância e, atualmente, vive em São Paulo. Seu e-mail: msantiago@usp.br