...ofereço para doação uma mãe incapaz
de vínculos e me declaro órfã por
vocação. (MORÁN, 2021, p. 23).
O que por muito tempo se designou por melancolia fez-se (upgrade) depressão, em que pese uma tipificação diferenciada nos dias de hoje. Um corpo e seu torpor. “uma madeira cheia de cupim”. (p. 28). Maria Elena Morán explora a relação de uma neta com a memória afetiva de sua avó em busca que compreende o retorno simbólico de quem se foi para esse mar adentro: quem sabe se não mais que uma vida interior.
Assim como Dorival Caymmi canta o mar da Bahia e sua imensidão, a prosa de Maria investiga o mundo simbólico de sereias e entidades desse outro mundo. “Uma canoa cheia de cachorros flutuava amarrada a um mangue”. (p. 50). Dia de cão. Um cachorro nos acompanha em prosa perturbada e investigativa. “O ofício da ciência é tão valioso quanto o da faxina; o de escrever é tão louvável quanto o de escutar música”. (p. 56). Helena Arruda, com sua “Flor no abismo” também nos apresenta o seu próprio mar.
as horas me chamam numa manhã ensolarada
de domingo (ARRUDA, 2021, p. 23).
Não percebo excessos na escrita de Morán; digo isto em função da temática delicada da degenerescência que envolve a avó da narradora. Seu universo partido entre o mundo de Dentro e o de Fora se nos apresenta bifronte e “desistir de quem precisa da gente para algo tão elementar como manter a sanidade é parecido demais com matar”. (MORÁN, 2021, p. 96). Matar ou morrer é o destino do leitor. Matar a curiosidade ou morrer de tédio; daí a incessante busca pela significação do texto. “Sentia o estômago e a cabeça como túneis em construção, desconexos, com ruído preso dentro”. (p. 121).
Penso no copo cheio e no copo vazio, cantado e decantado por Chico Buarque, desde a leitura de Natalia Timerman, que recentemente movimentou as redes sociais com reflexões acerca do Mal de Alzheimer, esse fantasma que traz pelo avesso o mundo de dentro. “Minha família de Fora não quer mais existir comigo. Também não deixa que eu vá embora com minha família de Dentro”. ( p. 128).
Meu pai, em seus últimos meses de vida padeceu dessa moléstia, muito em função de uma sequência de acidentes vasculares isquêmicos que aceleraram o processo degenerativo. O mundo de dentro se fazia cada vez mais presente ao longo do dia. Morán investe na descrição dessa busca, da aproximação da narradora e da incessante necessidade de reconstruir afetivamente os passos da avó. “: fio visível, fio escondido, fio visível, fico escondido”. (p. 164).
Sigo com as lembranças, agora de minha mãe, falecida tão nova, aos 48 anos, no distante janeiro de 1986. E a encontro em Morán quando me deparo com “Você não aprendeu a ser mãe porque teve medo de ser filha”. (p. 130). Escrevi um poema, há não muitos anos, em que reflito sobre essa relação, a partir de mãe e de avó materna:
a mãe da minha mãe
que também foi filha
depois foi mãe
e minha mãe
sua filha
quando mãe
não deixou de ser filha
Há certa magia no romance quando se volta para a construção do texto propriamente dito. Considerar a presença do leitor como passageiro da viagem faz com que a história seja compartilhada no momento da busca, da produção sincrônica de sentido.
Também estava a população de Salos, a de antes e a de
depois, como legião de leitores ladrões em potencial,
curiosos que quiçá guardavam entre seus documentos ou
jogavam entre seus lixos a infinidade de textos que eu
imaginava que faltavam e que ficariam faltando para
sempre. (p. 165).
A prisão da mente em cada corpo produz efeitos incalculáveis para o outro; ainda que o outro, sendo o mesmo, pareça que o vê de fora, pois que o de dentro é invisível aos olhos, como diz o ditado. “Se você visse como ela ficava nos domingos, quando o hospício se dividia em dois: o mundo dos que recebia visitas e o mundo dos que ficavam no portão esperando que aparecesse algum conhecido”. (p. 178).
Considero até certo ponto perturbadora a escrita de Maria Elena, pois que invade a nossa pretensa sanidade com esses arroubos inevitáveis da loucura. Se a história da literatura produzida por mulheres traz especificidades desse corpo que se experimenta, algumas das afirmações contidas no discurso são impregnadas por esse devir feminino: “Mulher sã já dá medo, imagina nós”. (p. 199).
Finalizo com alguns fragmentos extraídos de poemas de Helena Arruda, a título de imbricamento provocatório:
a mulher de dedos longos me deu as mãos e
me levou para seu barco (ARRUDA, 2021, p. 24)
eu sinto o sangue
escorrendo por rios subterrâneos
ansiosos por encontrar o mar. (p. 29)
subo na proa e tento encontrar a ilha, (p. 48)
muitas mulheres moram em mim
: deusas sereias bruxas putas santas (p. 68)
recolho-me e tenho sais nos olhos. (p. 100)
REFERÊNCIAS
ARRUDA, Helena. Há uma flor no abismo. Bragança Paulista, SP: Urutau, 2021.
MORÁN, Maria Elena. Os continentes de dentro. Porto Alegre: Zouk, 2021.
*Luiz Renato Souza Pinto, poeta, escritor, ator e professor. Colabora mensalmente com o tyrannus, através da coluna LETRAS DELAS, onde envereda por literaturas escritas por mulheres
divulgação

A venezuelana María Elena Morán é escritora e cineasta. Tem mestrado e faz doutorado em Escrita Criativa na PUCRS. É naturalizada brasileira desde 2019. Reside atualmente em São Paulo. Veio para o Brasil em 2012. Na Venezuela estudou jornalismo e antropologia, depois estudou roteiro em Cuba. Foi no Brasil que passou a se dedicar mais às letras, algo que já era uma vontade antiga. Tudo leva a crer que está dando certo. "Os Continentes de Dentro", seu romance de estreia foi bem recebido pela crítica