Assim que resolvi escrever um livro, vi o demônio. Presumo que cada um de nós vê o seu demônio. O meu tomou esta forma: um senhor de meia-idade mais pro balofo que pro atlético, linguista, e muito interessado nos esotéricos da semântica, da semiótica, da epistemologia, coisas essas que eu nuca vou saber o que são. Ontem me trouxe um pequeno poema "para crianças", ele disse. Tem vontade de tentar a literatura infantil. Sente nostalgia de traquinagem e inocência. Diz que gostaria de ser humano para poder publicar um livro e colocar retratinho dele, criança, na contracapa. Digo-lhe que as criancinhas de hoje gostam mesmo é de enfiar o dedo no cu. Ele fica alarmado. É mesmo? pergunta. E alisa os tocos dos cornos.
EU: tão curtinhos, não?
DEMÔNIO: tenho-os lixado, mas não há meio de acabar com eles.
EU: e porque deveria?
DEMÔNIO: imagens gastas, amigo. Não impressionam mais, mas...
(pigarreia com estrondo)
deixa ler o meu poema pra você, deixa?
EU: (entediado)
é muito comprido?
DEMÔNIO: não, é bem curtinho.
EU: então vai, vá.
DEMÔNIO: é um poema infantil, viu?
EU: tudo bem, desembucha.
DEMÔNIO: A bruxa perversa
voltou do mato às pressas.
Numa valise
guardava o nariz da antí-tese.
Na outra, a boca da antítese.
No guarda-roupa
guardou as tetas da tese.
Logo depois ficou louca
com a epiclese contínua das pombas.
Morreu de parangolese desconjuntada
coisa mais complicada que a metalepse.
A aldeia assombrada
só encontrou vestígios de valise:
fundo, as alças
e um cheiro nauseabundo de palavras.
DEMÔNIO: que tal?
EU: Pros filhinhos do Rosa tá bom.
DEMÔNIO: que Rosa?
EU: gente...! o Guimarães. Cê não conhece não?
DEMÔNIO: não sou chegado a escritor brasileiro não. aliás é uma língua que
comecei a estudar há pouco tempo. não tem quase consoante,
né? bem que alguém disse que é língua de criança e de velho, é
molengona, né?
EU: fala isso pro Euclides.
DEMÔNIO: que Euclides?
EU: o da Cunha, também não conhece não?
DEMÔNIO: não.
EU: aquele... “o sertanejo é antes de tudo um forte. não tem o
raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral.”
DEMÔNIO: coisa de sertão é? nunca fui lá. tenho horror daquele vaziozão.
*Pequeno trecho do livro “Pornô Chic” (Editora Globo – 2014), de Hilda Hilst, que formam a Trilogia Obscena da autora, composta por quatro livros: “O caderno rosa de Lori Lamby”, “Contos d’escárnio – textos grotescos”, “Cartas de um sedutor” e o livro de poemas “Bufólicas”
arquivo nacional

Hilda Hilst (1930 - 2004) nasceu na cidade de Jaú (SP). A autora é amplamente reconhecida como uma das grandes expressões da literatura em língua portuguesa no século XX. Formada em direito, decidou-se à criação literária deixando um legado que abrange poesia, ficção e teatro. O monólogo interior, o erotismo e questões existenciais são características de seus escritos. Foi traduzida para o alemão, espanhol, catalão, francês, inglês e italiano. Entre os prinipais prêmios que conquistou estão Pen Clube de São Paulo (1962), Anchieta (1969), APCA - Associação Paulista dos Críticos de Artes (1977), APCA (1981), Jabuti (1984), Cassiano Ricardo (1985), Jabuti (1994) e APCA (2003)