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Terça, 22 de março de 2022, 19h35 PROSA A lebre dourada* Silvina Ocampo No coração da tarde, o sol a iluminava como um holocausto nas lâminas da história sagrada. As lebres não são todas iguais, Jacinto, e não era sua pelagem, acredite, que a distinguia das outras lebres, não eram seus olhos de tártaro nem a forma caprichosa de suas orelhas; era algo que ia muito além do que nós, humanos, chamamos de personalidade. As inumeráveis transmigrações que sua alma tinha sofrido lhe ensinaram a se tornar invisível ou visível nos momentos indicados, para haver cumplicidade com Deus ou com alguns anjos intrépidos. Durante cinco minutos, ao meio-dia, ela detinha-se sempre no mesmo lugar da campina; com as orelhas erguidas, escutava algo. O ruído ensurdecedor de uma cachoeira capaz de afugentar os pássaros e a crepitação do incêndio de um bosque, que aterroriza as feras mais temerárias, não teriam dilatado tanto seus olhos; o pressentido murmúrio do mundo do qual se lembrava, povoado de animais pré-históricos, de templos que pareciam árvores ressecadas, de guerras cujos objetivos eram alcançados pelos guerreiros quando os objetivos já eram outros, deixavam-na mais dona de si e mais sagaz. Um dia parou, como de costume, na hora em que o sol cai vertiginosamente sobre as árvores, sem lhes permitir fazer sombra, e ouviu latidos, não de um cachorro, e sim de muitos, que corriam enlouquecidos pela campina. Com um salto seco, a lebre cruzou o caminho e começou a correr; os cachorros correram atrás dela confusamente. — Para onde vamos? — gritava a lebre com a voz trêmula, apressada. — Até o fim da sua vida — berravam os cães com vozes de cães. Esta não é uma história para crianças, Jacinto; talvez influenciada por Jorge Alberto Orellana, que tem sete anos e sempre me pede que lhe conte histórias, é que cito as palavras dos cães e da lebre, que o deixam encantado. Sabemos que uma lebre pode ser cúmplice de Deus e dos anjos, se permanecer muda diante de interlocutores mudos. Os cachorros não eram maus, mas tinham jurado alcançar a lebre com a única intenção de matá-la. A lebre adentrou um bosque, onde as folhas estalavam estrepitosamente; cruzou um prado em que o pasto ondulava com suavidade; cruzou um jardim, onde havia quatro estátuas das estações do ano, e um pátio coberto de flores, onde algumas pessoas ao redor de uma mesa tomavam café. As senhoras pousaram as xícaras para ver a carreira desenfreada que, em suas passagens, derrubava a toalha, as laranjas, os cachos de uva, as ameixas, as garrafas de vinho. Na primeira posição estava a lebre, ligeira como uma flecha; na segunda, o cão pila; na terceira, o dinamarquês preto; na quarta, o tigrado grande; na quinta, o pastor; na última, o galgo. Por cinco vezes, a matilha, correndo atrás da lebre, cruzou o pátio e pisou as flores. Na segunda volta, a lebre ocupava a segunda posição e o galgo, sempre em último. Na terceira volta, a lebre ocupava a terceira posição. A carreira seguiu através do pátio; cruzou-o outras duas vezes, até que a lebre ocupou a última colocação. Os cães corriam com a língua de fora e os olhos entreabertos. Nesse momento começaram a desenhar círculos, maiores ou menores à medida que aceleravam ou diminuíam a marcha. O dinamarquês preto teve tempo de afanar um alfajor ou algo parecido, que manteve na boca até o fim da corrida. A lebre berrava: — Não corram tanto, não corram assim. Estamos passeando. Mas nenhum deles a escutava, porque sua voz era como a voz do vento. Os cachorros correram tanto que, afinal, caíram desfalecidos, a ponto de morrer, com a língua de fora feito um trapo comprido e vermelho. A lebre, com sua doçura cintilante, aproximou-se deles levando no focinho trevos úmidos, que pôs sobre a testa de cada um dos cães. Eles voltaram a si. — Quem colocou água fria em nossa testa? — perguntou o maior deles. — E por que não nos deu de beber? — Quem nos acariciou com os bigodes? — disse o menor. — Achei que eram moscas. — Quem nos lambeu a orelha? — interrogou o mais magro, tremendo. — Quem salvou nossa vida? — bradou a lebre, olhando para todos os lados. — Tem algo estranho aqui — disse o cão tigrado, mordendo com minúcia uma das patas. — Parece que éramos em maior número. — Será porque estamos cheirando a lebre? — disse o cão pila coçando a orelha. — Não seria a primeira vez. A lebre estava sentada entre seus inimigos. Tinha assumido uma postura de cachorro. Em certo momento, até ela duvidou se era um cachorro ou uma lebre. — Nenhum de nós — disse o cão pila, bocejando. — Seja lá quem for, estou muito cansado para olhar para ele — suspirou o dinamarquês tigrado. De súbito, ouviram-se vozes, que chamavam: — Dragão, Sombra, Ayax, Lurón, Senhor, Ayax. Os cachorros saíram correndo e a lebre ficou imóvel por um momento, sozinha, em meio à campina. Mexeu o focinho três ou quatro vezes, como se estivesse farejando um objeto afrodisíaco. Deus, ou algo parecido a Deus, a estava chamando, e a lebre, talvez revelando sua imortalidade, fugiu num salto.
*Conto reproduzido do livro "A fúria" (Companhia das Letras - 2019), com tradução de Livia Deorsola. Disponível para aquisição no link https://www.companhiadasletras.com.br/detalhe.php?codigo=14506
bioy casares ![]() A argentina Silvina Inocência Ocampo (1903 ? 1993) foi escritora, contista, poeta e artista plástica. Atualmente é considerada uma autora fundamental da literatura de seu país no século XX. Sua criação literária, a princípio, foi ofuscada por outros autores gigantes como Adolfo Bioy Casares (seu marido), Jorge Luis Borges (seu amigo) e a escritora e editora Victoria Ocampo (sua irmã). Antes de migrar totalmente para a literatura, em 1935, foi artista plástica e estudou pintura e desenho em Paris onde conheceu, em 1920, Fernand Léger e Giorgio de Chirico, precursores do surrealismo |
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Fonte: Tyrannus Melancholicus Visite o website: https://www.tyrannusmelancholicus.com.br/ |